Reportagem do GD Mouraria e Carlos "Goshi"


Luta greco-romana. “Sentimos sempre a dor dos outros”

Na Mouraria, há um grupo escondido de lutas amadoras que treina no espaço recuperado pelos próprios atletas. A equipa de Carlos “Goshi” mostrou-nos como não vira a cara a nenhuma luta.


Nas últimas marchas populares de Lisboa, a Mouraria ficou apenas em sétimo lugar, apesar do tema familiar (o fado) e dos padrinhos famosos (os cantores Alexandra e FF). O resultado já não espanta os moradores – a marcha da Mouraria só venceu por duas vezes.

No Grupo Desportivo do bairro, os vestígios da marcha do ano passado ainda estão por ali, no andar de baixo do antigo Palácio dos Távora. Mas a Mouraria tem mais motivos de orgulho para além da marcha, pois tem também uma das melhores equipas de lutas amadoras do país. “Vêm ver os rapazes da luta, não é? Eles estão lá em cima”, informa-nos uma senhora, sentada numa cadeira de plástico. Nascida e criada na Mouraria, certamente, está ali para guardar a entrada. “São da TVI, é?”, pergunta-nos com ar cúmplice. “Subam, subam, é só subir!”

Nós subimos e subimos – com uma breve passagem pelo bar, de balcão de zinco e fumadores à janela, para pedir mais indicações – e lá encontramos a secção de lutas amadoras. Depois de escalar as escadas estreitas, chegamos à pequena sala que serve de escritório ao treinador (ou melhor, Mestre) Carlos Nunes. A dois passos para a esquerda fica a sala de treinos e a um para a direita está o balneário. O espaço é o mais estreito que se pode imaginar, mas hoje o treino terá umas 15 pessoas. “Mesmo assim não devem vir todos, que tivemos uma prova no sábado...”, desculpa-se Carlos.

O espaço é pequeno, mas bem acarinhado. Se nos anos 60 o grupo de luta da Mouraria era um dos mais populares do país, com o tempo foi entrando em decadência. Foi só há 12 anos que Carlos, depois de se retirar como atleta, decidiu começar a ensinar aquilo que fazia melhor – luta greco-romana e luta livre olímpica – e para isso pôs mãos à obra. Juntou alguns atletas interessados em reactivar a secção e limparam, pintaram paredes e arranjaram tapetes. “Ali para aquele lado ainda está tudo fechado, ainda não tive coragem de limpar. Mas já temos o apoio da Junta e daqui a uns meses vamos começar, para ver se recuperamos isto tudo e começamos a atrair mais gente!”

Mas o melhor chamariz de todos são os resultados e a mensagem mais eficaz é aquela que vai de boca em boca. O clube é vice-campeão feminino e ainda no último sábado terminou em terceiro lugar na Taça. E o grupo, composto por gente dos seis aos 35 anos, é o mais variado possível. “Vem gente de todo o lado. Há alguns miúdos aqui do bairro, mas são poucos. Vêm do Lumiar, do Campo Grande, até do Cacém!”, explica Carlos.

modalidade exigente “Olha, eu estou aqui todo dorido nas costas por causa da prova de sábado, nem posso puxar muito no treino hoje.” Nuno Fernandes é o nosso primeiro guia. Explica-nos a diferença entre a luta greco-romana e a luta livre: na primeira só podemos tocar no adversário da cintura para cima, na outra podemos tocar em qualquer parte do corpo. É proibido torcer ossos ou tocar na garganta, ao contrário do que acontece no MMA, o famoso vale-tudo. Também o fazem por aqui, mas ainda está numa fase de experimentação, juntamente com o Grappling.

Mas competição pura e dura é sempre na greco-romana. “A greco é o tipo de luta mais exigente. Há quem seja muito bom no boxe, por exemplo, e depois aqui não se safa quando chega ao chão, porque não tem a técnica”, explica Sérgio Reis. É o caso dele, que começou no boxe, mas aos 32 anos está completamente rendido à luta greco-romana: “Quem faz isto tem sempre um bicho cá dentro, é um gosto que nem dá para explicar!”

Nuno também experimentou outros desportos de combate, mas regressou à luta, o seu amor de adolescência. É uma história comum a quase todos, que passaram pelo karaté, pelo jiu-jitsu ou pelo muay-thai. Alguns ainda os praticam, para além das lutas . São desportos que lhes moldaram o corpo, inevitavelmente, mas não só. “Há uma ideia de que quem faz desportos de combate é super agressivo e quer é andar à porrada”, explica Sérgio, o lutador que é quase igual ao actor Benicio del Toro, mas com mais sorriso e menos peso. “Acho precisamente o oposto. Somos menos agressivos, temos mais autocontrolo, porque sabemos como cada movimento magoa.”

É essa consciência da dor que traz os nervos ao de cima antes de cada prova. “Ir defrontar uma pessoa que não se conhece, que não se sabe como reage, dá medo!”, confessa Sérgio. Daí a importância de treinar as manobras técnicas e de fazer simulações tácticas no treino. Mas o esforço físico é inevitável: “Há muitos casos de braços partidos. Nós por aqui até temos tido sorte, nunca tivemos nada de muito grave”, conta Nuno. “Este jovem aqui competiu no sábado com uma costela fracturada!”, diz Sérgio, apontando para Danyllo Lima, de camisola amarela e verde como as cores da bandeira do seu país. “A dor é sinal que estamos vivos”, responde Danyllo, de ar cansado, mas com um sorriso. “Não tem jeito, né?”, provoca Sérgio, imitando o sotaque do brasileiro.

um grupo unido No meio de tantos homens, há uma rapariga alta e bonita. “Ai, eles estão sempre a chatear-me, claro. Mas é bom para variar, é um ambiente diferente do da escola.” Ela é Ângela Costa, a enteada do Mestre Carlos, que pratica luta desde pequenina, como a mãe. Tem 12 anos, apesar de parecer muito mais velha. Passa a vida a tentar trazer as amigas para a modalidade, mas até agora sem sucesso. “Elas não gostam, não sei porquê.”

Todos tentam convencer os amigos a experimentar. Já Sérgio optou por trazer o filho de oito anos, o Sérgio júnior. Ele por lá anda, de rabo de cavalo a abanar, treinando os exercícios com o lesionado Danyllo. Aqui ninguém fica sem par e todos torcem para que o combate corra bem ao colega. “Sentimos sempre a dor dos outros. Ver um colega no tapete, sentir que ele está a dar o máximo... Parece que cada pancada que ele leva nos dói também”, diz o pai Sérgio com cara de esforço, como se estivesse ele próprio em combate. “Somos um grupo forte, em todas os sentidos...”

Uma força que assenta sobretudo em Carlos Nunes, dinamizador do grupo, do espaço, das competições. Por causa das dificuldades económicas de alguns atletas, o Mestre não lhes cobra nada, como nos conta Nuno. E ainda paga os seguros do seu bolso, se for necessário.”Não é qualquer um, não é?” Se alguém tiver comido uma bola de Berlim a mais, ele lá está a fazê-lo correr três quilómetros num dia para perder o peso necessário antes da prova. Sérgio chama-lhe “Mestre-Galinha”, com orgulho.

A maioria chama-lhe Carlos “Goshi”, que significa ‘anca’ em japonês. A alcunha vem da manobra que Carlos mais executava nos seus tempos de atleta, roubada ao judo. Para além da alcunha, outras coisas ficaram marcadas na sua vida. Como as suas orelhas, feridas em combate tantas vezes que não dá para disfarçar as cicatrizes. A luta é dura, mas é assim mesmo e Carlos dedicou-lhe a vida inteira.
 
Fonte: Por Cátia Bruno, publicado em 1 Dez 2012 - 03:10 | www.ionline.pt

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